terça-feira, 8 de março de 2011

O Instituto da Posse - Conceito e Natureza Jurídica


Ao se tratar de posse não há na doutrina um posicionamento pacífico pleno, a controvérsia vem desde os Romanos, tendo em vista a sua natureza jurídica e sua aplicação prática diversa (contratos de empréstimo, comodato, aquisição da propriedade e etc.).
Partindo do Art. 1.196 do Código Civil de 2002, “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.”, fica claro o seu conceito como o exercício fático (prático, real) de uma das faculdades (poderes) inerentes a propriedade. Pleno ou não no sentido de que tanto a posse quanto a propriedade podem ser compartilhadas e até restringidas como no caso de uma sublocação em que o locatário principal tem todos os poderes inerentes ao domínio e voluntariamente transfere-os para outra pessoa. Essas faculdades estão elencadas no Art. 1.228. do Código Civil de 2002 O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”.
O fenômeno da posse, em geral, é estudado por duas grandes vertentes, Ihering e Savigny. Nosso código civil adota Ihering. Para Savigny a posse é composta por dois elementos. O corpus e o animus domini, ou seja, para haver posse a pessoa deve estar fisicamente sobre a coisa e com intuito de possuir o bem como se dele fosse o dono.
Já para Ihering, um crítico veemente de Savigny, a posse é o exercício de um dos poderes inerentes a propriedade, como no nosso código, dessa forma para alguém ser possuidor basta ter de FATO o exercício daqueles poderes. O exercício de fato pode-se entender como a possibilidade de por exemplo ao alugar um imóvel poder nele entrar livremente, usar e gozar sem nenhum impedimento.
Nelson Nery Júnior esclarece que a posse por Ihering é um instituto com origem no direito germânico analisando inicialmente a Gewere:

“Instituto do direito germânico distinto da posse (possessio) e desconhecido dos romanos, a Gewere era a investidura justa (recht Gewere) que fazia de alguém na posse da coisa (de início somente móvel, mas depois imóvel também), independentemente da apreensão física (corpus) ou intenção de possuir (animus), fazendo com que se criasse uma aparência (presunção) de que o investido fosse realmente o possuidor (princípio da publicidade). Exemplo: posse do herdeiro. Não se limitava a afirmar que o investido era o titular do direito, porquanto a Gewere também tinha função legitimadora dos negócios jurídicos que o investido celebrava com terceiros de boa-fé, que com ele contratavam sob essa aparência, constituindo-se em situação jurídica que independia da existência do verdadeiro direito material.”
(German tribal law. The main notion in the law of property was Gewere, or the power exercised by the owner, which did not clearly distinguish between legal title and physical control. Various forms of limited ownership were recognized. Encyclopædia Britannica, 2011)

Além de Nelson Nery Júnior, Pontes de Miranda discorre sobre à Gewere:

“A abstração do animus é de origem germânica, pois a Gewere, a vestidura, a investidura, do direito medieval alemão, é puro poder fático sobra a coisa, de modo que, sem o animus dominationis, se podia ser possuidor(...). Não é de se espantar que a palavra ‘Gewere’ também tivesse o sentido de posse-direito (conjunto dos direitos e deveres derivados do poder fático sobre a coisa): a diferença entre a concepção romana e a germânica já se caracteriza na composição do suporte fático; o que uma considerava indispensável a outra dispensava (o animus). Depois de entrar no mundo jurídico o suporte fático, que podia ou não ser suficiente para o direito romano, a irradiação de efeitos do fato jurídico era normal; e daí falar-se em ‘Gewere’ como conjunto de direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções derivados do poder fático sobre a coisa.”
A posse por Ihering assegura o direito de propriedade uma vez que dá ao possuidor o direito de se manter com o bem. Ao contrário, em Savigny, desconsideraríamos o direito a propriedade imaterial ( direito de propriedade industrial Lei 9279/96, lei de propriedade intelectual de programa de computador lei 9609/98, direitos autorais lei 9610/98) bem como a possibilidade da posse indireta, ambos por não haver o elemento corpus.
Há a possibilidade de confusão ao se tratar a posse por Ihering, querendo trazer os mesmos elementos de Savigny, corpus e animus, diferenciando apenas a sua intenção, o animus, de ser dono para apenas estar com a coisa ou conservá-la, animus tenendi. Essa mudança seria forçosa, uma vez que a sua teoria é Objetiva, busca a aplicação econômica da propriedade, e não Subjetivista, sendo irrelevante dessa forma o elemento da vontade.   
Como já visto, o corpus é desnecessário uma vez que apenas o fato de poder fruir de uma coisa, já estaríamos em face do fenômeno da posse. Mesmo que um contrato de arrendamento de uma fazenda seja assinado em São Paulo, transferindo os poderes de uso e gozo para outra pessoa em Santa Catarina, no momento do acordo a posse já se transfere, no caso de um imóvel desimpedido. 
Em virtude da falta de consenso entre as duas grandes vertentes quanto ao conceito da posse, a sua natureza jurídica também está em conflito, seria ela um direito real ou apenas um fato?
Partindo do princípio de que direito é o interesse juridicamente protegido, poderíamos concluir que a posse é um direito. Todavia, o interesse que está sendo protegido nos interditos possessórios, não é o do possuidor e sim do proprietário, que ao transferir alguma de suas faculdades não quer ver seu bem arruinado ou seu patrimônio diminuído. Além de os interditos protegerem a propriedade através da posse, no mesmo sentido porém em outro prisma, eles também protegem o Ius possidendi (direito de possuir),   ser mantido com a coisa inclusive contra o possuidor indireto (“Art. 1.197. A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto.”). Se assim não fosse, os locatários, por exemplo, ficariam sujeitos a qualquer ato do proprietário, não havendo segurança à sua permanência.
Exemplo também ocorre no Comodato, em que o comodatário deve guardar a coisa como se sua fosse, o interesse não é dele, e sim do proprietário. Se nesse mesmo exemplo o imóvel fosse alvo de esbulho, o comodatário poderia propor ação de reintegração de posse, uma vez que é seu dever guardar a coisa, ele possui o direito subjetivo de se manter na posse enquanto durar o contrato, enquanto o comodante não pode reaver o bem antes de findo o prazo do contratual (Art.581(...) não podendo o comodante, salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz, suspender o uso e gozo da coisa emprestada, antes de findo o prazo convencional, ou o que se determine pelo uso outorgado.).
Ao dizer que a posse nada mais é que uma extensão da propriedade ou a visibilidade do domínio, descaracterizamo-la como um direito real, tornando-se na verdade um fato. A posse seria então, o poder de fato sobre as coisas e por sua vez a propriedade o poder de direito. De outra forma, ao adquirir a propriedade pela Usucapião estaríamos falando de um direito real transformando-se em outro. A meu ver, a aquisição da propriedade pela Usucapião origina-se de um fato jurídico qualificado, a posse qualificada. A sua qualidade deve-se pelo decurso do tempo e pelo intuito de ser dono do bem.
Quando dizemos que a posse é a extensão da propriedade, a aquisição desta por ocupação, no caso dos bem móveis, com fulcro tanto nas coisas abandonadas (res derelicta) quanto nas coisas de ninguém (res nullius), torna-se incoerente a primeira vista. Porém no momento que ocorre a ocupação, nasce ao mesmo tempo tanto a posse como a propriedade.
Concluo pois, que a posse é um fato jurídico que apenas protege a propriedade e a torna economicamente utilizável, dinâmica. Ao se retirar a posse de um bem de alguém, a sua utilização econômica é impossível, ficando estática. A confusão que ocorre ao trazer o elemento corpus também ao discurso de Ihering, se deve ao fato de que normalmente ao se estar fisicamente sobre um imóvel, por exemplo, normalmente já se está exercendo algum poder de domínio, porém como já visto, o exercício trata-se da possibilidade livre e sem impedimento. Um esbulho que ocorre na propriedade de um empresário de Brasília, em sua empresa em Rondônia, retira a sua liberdade de usar e gozar desse imóvel livremente. Mesmo a vários quilômetros de distância ele exercia os poderes inerentes a propriedade, ele era possuidor e proprietário, porém após o esbulho estará impedido de se beneficiar dos produtos e frutos que advém de sua propriedade. O mesmo fato ocorre com João da Palhoça, que mora em seu humilde terreno. Um grupo ligado ao MST invade sua casa e disfere dois tiros expulsando-o de seu bem. Ele também foi esbulhado e está impedido de exercer o uso de seu imóvel e por isso perdeu a posse. Para Savigny, ele perdeu a posse pois não tem mais o elemento corpus. Já para Ihering, ele perdeu a posse por não mais poder exercer as suas faculdades de dono. Em ambos os exemplos há a perda da posse, porém no primeiro caso a distância torna impossível existir o elemento corpus, porém, é evidente que a posse se transfere.
Com isso, a posse torna-se um instrumento indispensável quando se trata de direito das coisas e obrigacionais. Ao dizer que ela é um fato jurídico não diminui sua importância, até por que é nítida a presença dela em todos os direitos reais e em grande parte dos contratos, para proteger e garantir direitos.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Concurso de Infraçoes de Menor Potencial Ofensivo

Tenho como objetivo inical expor a discusão de uma controvérsia surgida após o advento da lei 9.099 de 1995 e posteriormente a 10.259 de 2001. Quando as infrações que compõe o concurso são de menor potencial ofensivo, qual o juizo competente para julgá-la? 
Concurso de crimes ocorre quando o agente mediante uma ou mais ações pratica mais de um crime. Ele pode ocorrer de maneira Material ( CP Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.), Formal ( CP Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior) ou Continuada ( CP Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.). 
Em se tratando de crimes de maior potencial ofensivo não há problema algum tendo em vista que o concurso será analisado no momento da dosimetria da pena.
Mas quando ele ocorrer com infrações de menor potencial ofensivo, aquelas em que a lei comina pena máxima não superior a 2 anos  (Lei 9.099/95 Art. 60.  O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência. Art. 61.  Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.).

Conforme entendimento do egrégio STF: "Havendo concurso de infrações penais, que isoladamente sejam consideradas de menor potencial ofensivo, deixam de sê-lo, levando-se em consideração, em abstrato, a soma das penas ou o acréscimo, em virtude desse concurso" (HC 80.811, DJU 23/03/02)." (TJDFT, CCP 2003 00 2 006572-3, Rel. Des. Lecir Manoel da Luz, j. 17.12.2003; in DJU de 10.03.2004.) 

A propósito, sobre o assunto, doutrinam Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes:

"No concurso de material de crimes (CP, art. 69), se a soma das penas máximas (de cada crime) excede de dois anos, não há espaço para os Juizados (segundo a doutrina predominante).

No caso de concurso formal ou crime continuado, a jurisprudência do STJ adota posição no sentido de que o aumento deve ser computado. Isso é inequívoco no que se relaciona com a suspensão condicional do processo, consoante enunciada da Súmula 243 do STJ: "O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um ano.

Aplicado o teor da súmula ao âmbito dos Juizados, se com o aumento decorrente dessas duas últimas causas a pena extrapola o limite de dois anos, não se trata de fato de competência."

(GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados Especiais Criminais, 4.ª ed., rev., ampl. e atual., São Paulo, Editora RT, 2002, p. 380-381.)

Neste mesmo sentido, assim se pronunciou o Colendo Supremo Tribunal Federal:

"Habeas corpus." Incompetência do Juizado especial criminal. Havendo concurso de infrações penais, que isoladamente sejam consideradas de menor potencial ofensivo, deixam de sê-lo, levando-se em consideração, em abstrato, a soma das penas ou o acréscimo, em virtude desse concurso. "Habeas corpus" deferido, para declarar a incompetência do Juizado especial criminal, e determinar que os autos sejam encaminhados à Justiça Estadual comum." (STF, 1.ª Turma, HC 80811/PR, Rel. Min. Moreira Alves, j, 08.05.2001; in DJU de 22.03.2002).

Neste mesmo diapasão, vem decidindo o TJDFT - Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios:

"CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. PROCESSO PENAL. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. LEI 9.099/1995 E LEI 10.259/2001.

1. A Lei 10.259/2001, em seu artigo 2.º, parágrafo único, ao definir as infrações de menor potencial ofensivo como sendo crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 02 (dois) anos, ou multa, derrogou o artigo 61 da Lei 9.099/95, ampliando, destarte, o conceito de tais crimes também no âmbito dos juizados estaduais. Assim, tem-se que, em regra, todos os crimes, com pena máxima não superior a dois anos, ou multa, são da competência do Juizado Especial.

2. Para definir-se a pena máxima, as causas de aumento e diminuição da pena, bem como as majorantes decorrentes das regras do concurso formal ou crime continuado, devem ser levadas em conta. No concurso material de crimes, de que trata o art. 69 do Código Penal, não se reconhecerá da competência dos Juizados se a soma das penas máximas dos crimes extrapola o novo limite de dois anos.

3. A Lei 9.099/95, com a nova concepção de infração de menor potencial ofensivo, aplica-se aos crimes sujeitos a procedimento especial - não ressalvados pela lei 10.259/01 -, inclusive às ações penais de iniciativa exclusivamente privada, ainda que tenham sido instauradas antes da vigência da Lei 10.259/01. A única exceção a ser observada quanto à competência dos Juizados Especiais Criminais diz respeito aos feitos relativos a entorpecentes ou substâncias capazes de determinar dependência física ou psíquica e os com eles conexos, devendo, nesse particular, aplicar-se o princípio da especialidade, prevalecendo a Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal e Territórios (Lei 8185/91, alterada pela Lei 9.699/98)." (TJDFT, CCP 2003 00 2 002582-6, Rel. Des. Edson Alfredo Smaniotto, j. 14.05.2003; in DJU de 03.09.2003.)